Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol...


quarta-feira, 31 de março de 2010

Sobrevivente

Esse texto, anônimo, foi encontrado ao fim da segunda Guerra Mundial num campo de concentração nazista:

"Sou sobrevivente de um campo de concentração.

Meus olhos viram o que ninguém deveria ter visto.

Câmaras de gás construídas por engenheiros formados.

Crianças envenenadas por médicos diplomados.

Recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas.

Mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades.

Assim... são muitas as minhas suspeitas sobre a educação.

(Anônimo)

A Outros Que Não A Ti

Amigo ou inimigo, te desafio.

Tu com tua falsa moeda,
Tu meu amigo, acolá, com ar de vencedor
Que me escondias a mentira quando atrevido devassavas
O meu segredo mais recôndito,
Atraído por faiscantes piscadelas de olho
Até que o doce dente de meu amor mordesse em seco,
Desgastando-se afinal, e eu, já trôpego, sugasse,
Tu, a quem agora imploro que te assumas como ladrão
Na memória esculpida por espelhos,
Com gesto sorridente que jamais se esquece,
Rapidez da mão na luva de veludo
E todo o meu coração sob o teu martelo,
Foste outrora aquela criatura tão franca, tão alegre
Um familiar que nada exigia
Que nunca imaginei fosses fraldar ou crer
Enquanto deslocavas uma verdade no ar,

Pois ainda quando os amei por seus defeitos
Tanto quanto por suas qualidades,
Meus amigos eram inimigos sobre pernas de pau
Com as cabeças ocultas numa nuvem astuciosa.

Dylan Thomas

*

segunda-feira, 29 de março de 2010




Dança sobre restos de cristais
deste tempo não tão belo
porque sozinha não estás


Dança sobre antigas cinzas
sobre todas as tuas feridas
sozinha não estás


Se a imagem de teu espelho já não está
será que estás
aprendendo a caminhar?


Dança sobre tua casa, entre a erva
o odor do inverno
sozinha não estás


Dança bela criança, pequena criança
distorções do tempo...
sozinha não estás


Sobre a fumaça que cobriu
a luz de nossa cidade
e ainda que doa


não a podemos modificar
Dança sobre a dor
que a dança à consumirá


Dança sobre a tua rua que dança
sobre esta casa que dança
se não se pode fazer mais...


Dança sobre a desventura
à luz da lua
sobre o campo e o mar


Dança, é caricia, é pudor
dança não é ódio, é amor
é aprender a voar


Se puderes dançar pelo ar
também as estrelas poderão abraçar-te
não sigas agarrada as tuas dores
que não sabem dançar


Dança junto a tua vida que dança
junto a tudo que falta
se não se pode fazer mais...


Dança...
Dança...
Dança...

(Marilina Ross)

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domingo, 28 de março de 2010

Conheci um velho jardineiro que a toda hora me falava num amigo dele. Os dois tinham vivido durante muito tempo como irmãos, antes que a vida os separasse. Tinham bebido juntos o chá da tarde, tinham celebrado as mesmas festas, tinham-se procurado um ao outro para pedirem alguns conselhos ou fazerem confidências. Que, bem vistas as coisas, um pouco tinham a dizer. Até os viam passear, depois de acabado o trabalho, sem pronunciarem uma só palavra. Limitava-se a olhar as flores, os jardins, o céu e as árvores. Mas, se um deles meneava a cabeça e apalpava entre os dedos alguma planta, o outro debruçava-se por sua vez e meneava também a sua. Acabavam de reconhecer o rasto da lagarta. E as flores abertas proporcionavam a qualquer deles o mesmo prazer.
Ora, aconteceu que um mercador contratou um dos dois e o associou por algumas semanas à sua caravana. Mas os ladrões de caravanas e depois as voltas que a vida dá e as guerras entre os impérios e as tempestades e os naufrágios e os lutos e as ruínas como uma pipa levada e trazida pelo mar, empurrando-o de jardim para jardim até aos confins do mundo.
Ora, o meu jardineiro, depois de uma velhice em silêncio , recebeu um dia uma carta do amigo. Sabe Deus quantos anos ela tinha navegado. Sabe Deus que diligências, que cavaleiros, que navios, que caravanas, a tinham pouco a pouco encaminhado, com essa mesma obstinação das milhares de ondas do mar, até ao seu jardim. E, nessa manhã, como ele resplandecia de felicidade e a queria partilhar, pediu-me para ler, como se pede pra ler um poema, a carta que tinha recebido. Ficou-se a ler no meu rosto a emoção da leitura. A verdade é que eram só algumas palavras, porque os jardineiros sempre tinham tido mais habilidade ára cavar do que para escrever. Só consegui ler: "Hoje de manhã, podei as minhas roseiras...". Aquilo me fez meditar sobre o essencial, que sempre me pareceu informulável. E meneei também a cabeça, como eles teriam feito.
Daí em diante, nunca mais o meu jardineiro havia de saber o que é o repouso. Poderias tê-lo ouvido informar-se da geografia, dos correios, das caravanas e das guerras entre os impérios. Três anos mais tarde, chegou por acaso o dia de eu mandar qualquer embaixada ao outro lado da terra. Mandei chamar o meu jardineiro: "se quiseres, podes escrever ao teu amigo." As minhas árvores sofreram um pouco com isso e também os legumes da horta e houve festa entre as lagartas, porque ele passava o dia em casa gatafunhando, rasurando, recomeçando a tarefa, tirando a língua de fora como uma criança debruçada sobre o trabalho. Mas descobria qualquer coisa de urgente a dizer, como que sentia a necessidade de se transportar todo ele, na sua verdade, para a casa do amigo. Precisava construir a sua própria ponte sobre o abismo, alcançar a outra parte de si próprio através do espaço e do tempo. Precisava dizer o seu amor. Por fim, todo corado, veio-me submeter à apreciação a sua resposta e perscrutar outra vez ainda no meu rosto um reflexo da alegriaque havia de iluminar o destinatário. O que ele queria era experimentar em mimo poder das suas confidências. Afinal, apenas confiava ao amigo, na sua escrita aplicada e desajeitada, como que uma oração muito convicta, mas de palavras humildes: "Hoje de manhã, também podei as minhas roseiras...". Na verdade, era o mais importante que ele podia dar a conhecer:(...)
Após a leitura, permaneci calado, meditando sobre o essencial, que eu ia compreendendo cada vez melhor. É que eles, sem o saber, estavam afinal a homenagear-te: era em ti, Senhor, que eles vinham a encontrar, para além das roseiras.

Saint Exupéry

*

Diálogo III

Ela: Vou abrir o portão.

Ele: Abra sim, eu entro.

Ela: Se vc tivesse aqui, eu nem precisaria ir lá abrir o portão.

Ele: Por que?

Ela: Porque já estaria aberto, pra não perdermos um segundo sequer.

Ele: Talvez a gente se encontre, ainda lá fora, você vindo me abraçar.

Ela: E você vindo me encontrar.

*

sexta-feira, 26 de março de 2010




Li Tai Pô

Na vida,
é preciso tanto seriedade
quanto delírio.
Se tiveres mais de um pão,
vende um
e compra um lírio.

(Canções de Camponeses do Japão)

*

quinta-feira, 25 de março de 2010

Esta a moral que Mermoz* e tantos outros me ensinaram. A grandeza de uma profissão é talvez, antes de tudo unir os homens; só há um luxo verdadeiro, o das relações humanas.
Trabalhando só pelos bens matérias construímos nós mesmos nossa prisão. Encerramo-nos lá dentro, solitários, com nossa moeda de cinza que não pode ser trocada por coisa alguma que valha a pena viver.
Se procuro entre minhas lembranças as que me deixaram um gosto durável, se faço o balanço das horas que valeram a pena, certamente só encontro aquelas que nenhuma fortuna do mundo teria me presenteado. Não se compra a amizade de um Mermoz, de um companheiro a quem estamos ligados para sempre pelas provas sofridas juntos.
Esta noite de vôo e suas cem mil estrelas, esta serenidade, esta soberania de algumas horas, o dinheiro não compra.
Esta face nova do mundo depois de uma etapa difícil, estas arvores, estas flores, estas mulheres, estes sorrisos docemente coloridos pela vida a que regressamos de madrugada, este mundo de pequenas coisas que nos recompensam, o dinheiro não compra.

(Saint Exupéry)

* Jean Mermoz: Companheiro de Exupéry, foi o criador da aviação postal transoceânica na França, realizou a primeira viagem, levando os primeiros volumes de correspondência - 130 quilos - para a América do Sul. Partiu de Saint-Louis no dia 12 de Maio de 1930 num monomotor Laté 28 com flutuadores e pousou em Natal 21 horas depois. Quando terminou seus estudos, ingressou na aviação como piloto de linha. Foi o primeiro a cruzar nos dois sentidos o Atlântico Sul em 1933, utilizando-se do trimotor "Arc-en-Ciel". Enfim, depois de doze anos de trabalho, sobrevoando mais uma vez o atlântico sul, disse, numa rápida mensagem, que o motor da direita estava falhando. Depois, silêncio.

terça-feira, 23 de março de 2010

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Amor de Tarde

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso 10 minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer “e aí?” e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono.

(Mário Benedetti 27-09-1920 - 17-05-2009)

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segunda-feira, 22 de março de 2010

AMOR MUDO

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Ardendo de amor, as cigarras
cantam: mais belos porém são
os pirilampos, cujo mudo amor
lhes queima o corpo!

(Canções de Camponeses do Japão)

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domingo, 21 de março de 2010

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Hoje de manhã, podei as minhas roseiras...
Saint Exupéry
*

sábado, 20 de março de 2010

Tomara eu que fosses permanente e bem fundado, que fosses fiel.
Fiel é uma pessoa, em primeiro lugar, para consigo própria.
Que podes esperar da traição? Os laços que te hão de reger, que
te hão de animar, que te darão sentido e luz levam longo
tempo a atar. Repara nas pedras do templo. Deus me livre de voltar
a espalhá-las todos os dias, na pretensão de obter templos
melhores. Se trocares a propriedade por outra talvez melhor na
aparência, perdeste qualquer coisa tua que nunca mais voltarás
a encontrar. Por que será que te aborreces na casa nova? Se ela é
mais cômoda e corresponde melhor aos teus desejos do que
a outra, tão desprezível!... O poço deixava-te os braços doridos.
Sonhavas com uma fonte. Aí tens a tua fonte. Mas falta-te, daqui
para o futuro, o cântico da roldana e a água tirada do ventre da terra,
que cintilava ao sol.
Saint-Exupéry
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quinta-feira, 18 de março de 2010

Se todos os rios são doces, de onde o mar tira o sal?
Como sabem as estações do ano que devem trocar de camisa?
Por que são tão lentas no inverno e tão agitadas depois?
E como as raízes sabem que devem alçar-se até a luz e saudar o ar com tantas flores e cores?
É sempre a mesma primavera que repete seu papel?
E o outono?... ele chega legalmente ou é uma estação clandestina?

Pablo Neruda

*

terça-feira, 16 de março de 2010

Tática e Estratégia

Minha tática é
olhar-te
aprender como tu és
querer-te como tu és


minha tática é
falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível


minha tática é
ficar em tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto
porém ficar em ti


minha tática é
ser franco
e saber que tu és franca
e que não nos vendemos
simulados
para que entre os dois


não haja cortinas
nem abismos


minha estratégia é
em outras palavras
mais profunda e mais
simples
minha estratégia é
que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto
por fim me necessites.

(Mario Benedetti)

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Devagar,
o tempo transforma tudo em tempo.
O ódio transforma-se em tempo.
O amor transforma-se em tempo.
A dor transforma-se em tempo.
Os assuntos que julgamos mais
profundos, mais impossíveis,
mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.
Mas, por si só, o tempo não é nada,
a idade não é nada, a eternidade não existe.

(José Luís Peixoto)

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sábado, 13 de março de 2010

Diálogo II

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Ela: Sou um castelo de areia na beira do mar.

Ele: Sou o mar.

Ela: Queres me destruir?

Ele: Não, quero te levar pra mim.

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Leo&Marie

quinta-feira, 11 de março de 2010

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Aterrisei na doçura da tarde. Fico parado junto
a uma fonte e olho as moças. Assim, tão perto da
beleza dessas moças, sinto ainda melhor o mistério
humano. Em um mundo em que a vida se une tanto à
vida, em que as flores amam as flores no próprio
leito dos ventos, em que o cisne conheçe todos os
cisnes, só os homens constroem sua solidão.

(Saint-Exupéry)

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terça-feira, 9 de março de 2010

Estrelas



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Estrelas são conchas que escondem
mares.
Quando amanhece, as águas as reco
lhem.
E nós as recolhemos quando peque
nos.
Alguns mantêm o costume.
Os mesmos que gostam de olhar as
estrelas
e nem notam que faltam algumas -
aquelas que eles possuem
em suas caixas ou potes de maionese.
Estes, os colecionadores, são os
mesmos
que antes de dormir pensam nos
amores,
nos sabores, nas pessoas.
Estes, meus senhores, estão à nossa
procura.

(Elaine Pauvolid)

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segunda-feira, 8 de março de 2010



Essa, eu dedico a todas mulheres, em seu dia.

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domingo, 7 de março de 2010

Diálogo

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Ela: sinto falta da falta da imprensa.

Ele: sinto falta de tanta coisa.

Ela: sinta falta das rodas trovadorescas.

Ele: sinto falta de alguém.

Ela: sinto falta dos gladiadores.

Ele: sinto falta dos sabores.

Ela: sinto falta do tum tum tum do coração.

Ele: ah! como eu sinto falta do tum tum tum, do frio na barriga.

Ela: falta das cores. (risos)

Ele: Vermelhos, azuis e amarelos, sempre faltam.

Ela: Tudo falta, até a vida.

Ele: Dá-me um pouco de vida?

Ela: Se me falta, como lhe ofereço?

Ele: Traga-me cor.

Ela: Não as vejo, como faço?

Ele: Talvez eu te mostre e você me dá.

(...)

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Leo&Marie

sábado, 6 de março de 2010

Reflexão n°.1

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Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.


Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.

(Murilo Mendes)

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quinta-feira, 4 de março de 2010

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“Os homens cultivam cinco mil rosas em um só jardim e não encontram o que procuram e, no entanto, o que procuram poderia ser encontrado em uma única rosa, mas os olhos são cegos, é preciso enxergar com o coração”

O Pequeno Principe

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terça-feira, 2 de março de 2010

Canção de Amor da Jovem Louca

Fecho os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que inventei você no interior da minha mente)

Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
Entra a galope a arbitrária escuridão:
Fecho os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para a insanidade.
(Acho que inventei você no interior da minha mente)

Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo do inferno:
Retiram-se os serafins e os homens de Satã:
Fecho os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Imaginei que você voltaria como me prometeu
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que inventei você no interior da minha mente)

Deveria, ter amado um falcão no seu lugar
Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo
Fecho os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que inventei você no interior da minha mente)

Sylvia Plath


Ninguém percebe quando partimos.
Quero dizer, o momento em que
realmente escolhemos partir.
Na melhor das hipóteses, você
pode sentir um sussurro ou uma
onda de sussurros ondulando
subitamente.

(Um olhar do paraíso)